quarta-feira, 23 de março de 2016

#91

Maldita hora que entrou naquele bar.

Depois de ganhar cadeira cativa nos botecos de sempre, onde alternava entre cerveja, cachaça e feijão amigo, foi agradar um amigo e "conhecer um lugar melhor, que não seja pé sujo".

Teve como desculpa um aniversário. E como aliado uma banda de ótimo repertório. Entre um assunto e outro, não pode não reparar naquela magrela de cabelos negros que acompanhava discretamente todas as melhores musicas da noite.

Despretensiosamente se aproximou e perguntou o nome daquela música.

E assim, entre beijos intensos, caricias apaixonadas, banhos mal intencionados e noites quentes, a conversa se estendeu por algum tempo.

Mas no fim, estava ele de novo nos lugares de sempre, bebendo aquela cachaça de minas pra esquecer, sabendo que só fazia lembrar.

Ela chegou, deu boas recomendações musicais e foi embora deixando saudade. Tem gente que nem isso faz.

#90

- você tira o miolo do pão? - perguntou ela enquanto pegava a faca pra cortar o dela.

- aham - ele respondeu, pensando no quão estranha era aquela pergunta feita por uma desconhecida, antes de sua sagrada xícara de café, na primeira manhã da semana que ia passar descansando naquele hotel fazenda.

- e faz o que? Joga fora ou come depois com manteiga?

- eu jogo fora - respondeu sem ainda não entender nada do que estava acontecendo ali.

- você deve ter problema com gases né? Minha vó sempre disse que o miolo do pão da gases. Posso sentar com você?

Ele ficou sem reação. Ainda mais quando ela não esperou a resposta e sentou assim mesmo. Foi então que ele reparou como era bela.
Aquela manhã, a paisagem verde na janela, e o rosto dela, sem maquiagem, sorrindo enquanto o sol acariciava sua pele.

#89

- de onde você tira essas coisas que escreve? Tipo, qual sua inspiração? - ela perguntou enquanto recostava em seu peito e tinha os cabelos levemente afagados.

Ela sempre fazia umas perguntas estranhas no pós sexo. As vezes fazia até ele pensar se durante tudo aquilo, aquele furor inexplicável, aquela troca de gemidos, prazer, fluidos e tantas outras coisas, ela estava com a cabeça em outro lugar.. Mas nunca tinha feito uma pergunta tão difícil.

Difícil porque nem ele sabia a resposta. Não tinha certeza dos motivos ou porquês, até porque não tinha certeza de nada na vida. As vezes era uma situação, as vezes uma música, uma história que ouviu de alguém, ou algo que viveu com alguém.

Só sabia que tinha que ter sentimento. Tinha que tocar o coração. Tinha que ser algo pelo que valesse a pena escrever, e ao mesmo tempo algo quase impossível de descrever ao escrever.

Quando tal coisa vinha na cabeça, ele não sossegava até registrar. A história martelava em sua cabeça até ser posta no papel. Ele se via na história, e por escrevia como se estivesse lá, pra não dizer que se colocava algumas vezes no lugar dos personagens.

E depois de pensar tudo isso numa fração de segundos, respondeu:

- sei lá.

Porque ele queria curtir aquele momento sem grandes complicações. Só os dois ali, deitados nus no tapete da varanda, olhando pra lua através do teto de vidro, enquanto pensava que aquela noite, desde o mal entendido sobre o ponto de encontro, passando pelo cinema e depois o jantar feito por ele no apartamento novo semi-mobilidado, e que incluía tudo o que ela mais gostava gastronômicamente falando; daria um bom conto.

#88

"Como a cidade eh tranquila dessa varanda". - fazia de tudo pra se distrair, mesmo mentindo para si mesmo enquanto ouvia buzinas e via o movimento normal de uma cidade litorânea no verão.

Mas, parando pra analisar, tinha um pouco de razão. Quando entrou pela porta da nova morada, deixou pra trás os problemas cotidianos, toda a cobrança e motivos de aflição, e ficou em paz.

Ali dentro ele só queria imaginar o futuro. O quanto ainda haveria de lutar, os obstáculos que deveria contornar, e tudo que a vida reservava para que todos os seus dias fossem tranquilos quanto aquela música de Cícero que tocava no spotify.

Sempre lhe disseram que não custa sonhar, mas ele já aprendeu que o preço eh alto.

#87

Podia não admitir, mas morria de saudade.

Era tão normal estar com ele, mesmo que não fisicamente, que aquele tempo "longe" a corroíam por dentro e deixava um vazio nos seus dias.

Não sabia porque não se entregava de vez. Seria o pavor da possível cobrança? Seria o fato de que nada vem dado certo ao ponto de não valer a pena criar expectativa nenhuma? Seria a pulga atrás da orelha sobre o sexo ser bom ou ruim? Ou até mesmo a lembrança das palavras dele, de que não tínhamos nada pra dar certo?

E cheia de dúvidas não demonstrava interesse, não demonstrava carinho, não demonstrava curiosidade, não demonstrava amor, não demonstrava nada. Não via um bom motivo pra se entregar assim.

Mas não percebia que aquela procura discreta, numa noite qualquer, depois de dias que ele não puxava assunto, demonstrava mais do que tudo que pudesse dizer.

#86

Naquele dia 31, ela estava tão linda quanto o normal.

Mas talvez fosse a saudade, já que ela morava longe e não podia estar com ele antes por conta do trabalho; talvez fosse a casa pequena com mil parentes nessa época de virada de ano que não lhe davam privacidade nenhuma, ou até aquele vestido listrado preto e branco decotado, que realçava todas as melhores curvas do seu corpo, mas ele sabia que naquele dia a desejava como nunca.

Quando chegou em casa pra se arrumar, ela já estava pronta, e, abobalhado, a primeira coisa que conseguiu dizer foi: "como você está gostosa hoje". Tomou banho pensando mil coisas, mas não tinha imaginação suficiente pra prever o que viria.

As carícias começaram no corredor, e esquentaram no elevador sem preocupação nenhuma com o novo sistema de câmera que talvez até tenha substituído aquela câmera que ele sabia ser falsa, por uma de verdade. Já era impossível esconder seu tesão, evidenciado pela bermuda branca que marcava seu pau sem pudor algum.

Ele sabe eh que quando saíram, ao invés de pegar o caminho pra portaria, fizeram o inverso, direto pro banheiro social. E lá dentro, tudo ficou de lado. As promessas de ano novo, o make-up, o vestido listrado e a cueca da sorte. Aquele banheiro nunca teve um mix de amor e prazer tão intenso em seu pouco espaço interno.

Gozaram junto com os primeiros fogos da festa de virada. Nunca foi tão bom perder a entrada de ano. E pros que dizem dar azar, afirmam que nunca começaram um ano tão bem.

#85

Ele não podia mentir, ela o ganhou pelo cheiro.
Ficou encantado com aquele aroma suave que o acompanhou pelo resto da noite, depois dos dois beijinhos ao cumprimenta-la.

Depois, de longe, se apaixonou pelo olhar. Ele de um lado da mesa, ela de outro, mas em meio a conversas cruzadas entre os mais de dez integrantes daquele happy hour, também se cruzavam os olhares, vez ou outra.

Por ultimo, o sorriso. Só riso. Através dele, ela emanava alegria e embriagava o coração daquele moço já meio alto de cerveja e umas doses de cachaça. E ele já nem sabia em quem colocar a culpa por estar nas nuvens. Seria a bebida, ou seria ela?

Essa situação se repetiu por algumas vezes espaçadas, quando calhavam de se encontrar e sentar na mesma mesa de bar, onde ele pode também reparar em todas as curvas do seu corpo, desde aquele piercing no septo e nas coxas grossas quase sempre aparentes.

Pode também conhecer melhor a personalidade forte e cheia de vida, além do humor atípico, daquela morena que sempre andava acompanhada de um cigarro de menta. E só pensava em quantos problemas valeria a pena se meter por conta dela.

Mas naquele dia quente de verão, chegou em casa com a cabeça flutuando, sem saber se os olhares dela foram reais ou imaginados. Só sabia de uma coisa, ainda sentia aquele perfume.

#84 - Hiato

Hiato.

Segundo o dicionário, consultado as tantas horas da madrugada, uma das variações do significado de hiato eh um intervalo, uma lacuna, uma falha.

E eh isso o que sentia deitado na cama após uma noite ótima, porém sem emoção. Queria sentir algo mais, algum frio na barriga. Mas sofria de hiato.

Não existe diagnóstico pior.

#83

Sentado na varanda ele via o mundo.

Os carros na ponte ao longe, a iluminação precária daquele prédio antigo, pichações aleatórias em locais tao inusitados que ele não sabia como chegaram até ali.

Também via pessoas. Com sacolas de compras, de mãos dadas com alguém, correndo para não perder o ônibus e alguns apenas caminhando com a solidão.

Era mais fácil ver e imaginar o exterior do que a imensidão de nada ao olhar para si mesmo.

#82

Nesse exato momento não quero te ver nunca mais.

Não quero saber como foi seu dia, não quero saber qual besteira você comeu, não quero saber qual novo livro está lendo, não quero saber se seu sobrinho, que já quase considerava meu, aprendeu alguma nova palavra.

Sei que agora; enquanto fui obrigado a largar meu lazer, um dos poucos momentos em dias que eu me distrai de você, pra ter que voltar ao trabalho e ser arrastado novamente pra uma realidade em que sua falta me doi; enquanto espero pacientemente que os hóspedes fumem maconha na calçada e subam para o quarto; eu nunca mais quero te ver.

Eu só penso em você.

#81

Hoje, meio que por descuido, fui no lugar do nosso primeiro beijo.

Não era o intuito. Não estava nem pensando em você. Mas quando sentei de frente praquela mesa, e pensei em tudo que nos aconteceu, fiquei aéreo.

Já não estava ali com os amigos, discutindo sobre a desenvoltura artística de Sérgio malandro ou o caos no trânsito de cabo frio. Só pensava no bem e no mal que você me fez.

Confesso, eh impossível não sorrir, mesmo que de canto de boca, ao pensar em você. Ainda mais com "ensaio sobre ela" de Cícero tocando no spotify. Por mais que eu tenha chegado em casa e excluído seu número da agenda, mesmo sem nos falarmos a dias, e também excluído o aplicativo do facebook pra tentar não ter nenhuma lembrança sua, o que eu mais quero eh experimentar tudo o que sonhei com você.

Eu só queria que você tivesse esquecido algo aqui. Qualquer coisa. Nem que uma satisfação do porque não estamos juntos agora. Uma forma de eu me libertar de você.

"Ainda faz um tempo bom pra desperdiçar comigo..."

#80

Chove lá fora.

E ele, que não é nem nunca foi fã da chuva, sentou na porta da varanda e ficou olhando ao longe. Um gole, um trago, e pensamentos vagos.

E o céu estava tão cinza quanto a vida. A pintura desbotada dos prédios ficava mais aparente enquanto a água escorria e formava manchas aleatórias na fachada. A chuva deixava o entardecer, sempre tão belo daquele ângulo, triste.

Mas ele não. Estava atônito, mas permanecia sonhador. Planejava colocar em prática a cobertura da varanda, com as toras de eucalipto e o telhado de acrílico que já pensava a tempos, e o quanto aquele revestimento reutilizado que tinha em mente não ia ser tão ruim quanto falavam. E pensava que após aquela noite de descanso após 36 horas acordado, ia acordar um novo homem.

E tomara que dessa vez estivesse certo.

#79

Sobre a falta de lembrar dos números.

Exclui tudo relacionado a você, pela dor que me causava. Qualquer meio de me comunicar, de expressar o que sentia, de por descuido falar sobre a falta que você me faz.

Mas então, num bar qualquer, encostado numa mesa até pouco ocupada por um casal apaixonado, que sinto uma vontade incessável de te procurar. Mas por onde?

Talvez minha tática tenha dado certo. Até demais.

#78

Mah, você lembra aquele dia que eu sai tarde de casa, escondido da minha mãe só pra ir te ver, e no meio do caminho peguei uma chuva danada de bicicleta e mesmo todo molhado você me deu um abraço apertado quando cheguei?

Aquilo era amor Mah.

Ali, longe de problemas do trabalho ou faculdade, onde um pastel da Sonia era suficiente pra matar nossa fome de comida enquanto nada no mundo matava nossa fome de sexo. Ali, sem carro, sem dinheiro, sem preocupações, era só amor.

O tempo passou Mah. E a gente se perdeu no caminho.

#77

Quase nunca reclamava de suas decepções amorosas, mas porque a mania de envolve-las em trilhas sonoras?

Essa quase que necessidade de musificar tudo, e com música boa ainda por cima, o obrigava a lembrar de alguém sempre que tocava Bogotá, lounge, luzes da cidade e tantas outras.. E o que dizer do CD todo de Cícero? Nessa historia já tinha comprometido uma boa parcela de sua playlist de favoritos no spotify.

Fora as vezes em que esbarrava com aquele cantor nos bares da vida, com aquele mesmo repertório, que por vezes ainda vinha acompanhado de um antigo amor também prestigiado o show e a cerveja gelada.

Talvez por isso buscasse naqueles dias Musicalidades diferentes para preencher um vazio que atormentava sua alma.

E também talvez essa dica pudesse vir dos lábios daquela morena da mesa da frente, que cantarolava "mãe Alice" sem tirar aqueles olhos negros dos dele.